INSTRUMENTOS DE VIDA: OS DIREITOS DO PACIENTE VISTOS PELO PACIENTE

Herbert Daniel*


Os Direitos do Paciente coloca em discussão a complexa relação entre médicos e pacientes. Nela você não deve encontrar o jargão pesado da medicina e sim deve imperar uma linguagem clara que fale de direitos, sentimentos e vida. De fato, você não precisa de palavras eruditas, que fazem da prática da medicina quase um segredo de "estado".

Nesta discussão é fundamental o respeito a democracia e cidadania.

A aparência da ciência muitas vezes oculta no vocabulário quase mágico de sufixos e prefixos gregos e latinos a ausência de consciência sobre os reais problemas com que se lida. Quando faltam idéias, ocorrem sempre muitas palavras difíceis. O médico moderno, aberto e democrático deveria preferir as idéias. Assim ele recupera a dignidade científica da medicina, exatamente porque enquadra esta atividade dentro do vasto conjunto das artes do viver e do morrer.

A discussão dos Direitos do Paciente é fundamental na atualidade. Principalmente porque não se reduz a se fazer uma listagem abstrata de direitos dificilmente exercidos, mas discute a prática cotidiana da medicina e a forma como nascem direitos novos, numa relação entre dois cidadãos. Esta é uma abordagem bastante original.

De fato, muitas vezes a discussão sobre os Direitos do Paciente fica prejudicada quando parece ser uma fala piedosa sobre algumas condições que tornam menos triste a posição do "paciente" diante do "técnico". O médico que respeita os Direitos do Paciente, pode criar uma relação entre médico e paciente como uma relação social entre dois seres sociais, ambos com seus direitos, ocupando uma posição determinada no universo político. Isto significa que o que se chama de conjunto de direitos do paciente não é um modo de hierarquia, entre um que "sabe" e um que "sofre", mas uma troca de atividade onde se busca a melhor solução para os problemas de saúde de todos.

É extremamente importante observar que nesta discussão sobre os direitos do paciente, não só o paciente é agraciado com a condição de cidadão. O médico também. Isto pode parecer uma coisa simples, que deveria ser óbvia.

No entanto, temos observado que, muitas vezes, a discussão dos direitos do paciente é unilateral, aborda sempre o lado daquele "que sofre" (paciente), adotando para a figura do médico o papel daquele que intervém, que soluciona, que não deve errar, que está acima do bem e do mal... Portanto, reservando ao médico a posição de um agente permanente do poder. O médico que respeita os direitos do paciente, deve sem muita conversa fiada, abandona todos os tipos de supervisão que localizam o espaço da prática médica na magia e no mistério, estabelecer uma relação entre médico e paciente e criar uma relação entre seres humanos historicamente determinados. Ganha com isto o paciente, agora um cidadão aliviado da estupidez da tecnocracia. Ganha com isto a democracia, palavra que passa a ter uma associação estreita com a medicina. Um avanço: considerar que a democracia é a primeira e fundamental das terapias!

Acho que tenho uma boa experiência pessoal para dizer que a democracia é um agente terapêutico fundamental. Quando soube que tinha AIDS vivi um momento atormentado por ter acreditado na fórmula preconceituosa que, desde o início dos anos 80, rezava que AIDS = Morte. Logo descobri, felizmente, que esta fórmula nada tinha a ver com a finitude , com a certeza da mortalidade, que é aspecto da realidade humana que deve ser vivida com grandeza. Não, esta fórmula tinha a ver com a decretação da morte civil, uma condenação à ausência de todos os direitos humanos básicos.

Aprendi, na inquietante posição de "paciente", que a palavra médica, com sua arrogância, podia ser veículo da pior das patologias, que é exatamente a da abdicação da liberdade. A palavra, dita como sábia, gerava minha total perda de autonomia: eu passava a ser o meu não-corpo, embora fosse apenas um corpo, torto e quase morto. Isto é um "doente", um objeto em corpo alienado, um corpo que se reduz a ser sede do sofrimento, enquanto o corpo real, o sujeito, está entregue nas mãos de um "cientista" que faz dele o que bem quer, ditando sua vida e sua morte. Este seqüestro do corpo, que dura muito tempo pareceu ser o modo exclusivo de exercício da medicina, é simplesmente uma maneira autoritária de suspensão da cidadania, de fazer do doente um indivíduo com os direitos civis entre parênteses.

Quando uma doença com a AIDS coloca em questão o saber médico, estas circunstâncias do exercício da arbitrariedade médica impossibilitam viver a vida e viver a morte. Nada nos resta senão a sujeição total à ditadura da terapêutica. Esta ditadura é condição de vida onde "tudo se faz" pela "cura", entendida aqui - em pleno reino da superação - como a "salvação". A ideologia "salvacionista" não facilita nada, a não ser desenvolver a idéia de que a doença é a "perdição". O triste resultado desse pântano de alienações é uma gradual perda de consciência, uma predominância absoluta da morte civil. Não há pior maneira de morrer, senão esta, em que uma atividade "médica" nos prepara para sermos apenas cadáveres bem comportados, escondidos no fundo de corredores, embaixo de um cipoal de tubos e fios, como legumes macabros. A morte torna-se apenas um ato obsceno: um ato fora de cena.

Ora, a vida se passa em cena. A morte tem seu lugar inevitável nesta cena. A atividade médica deve ser um dos arquitetos dessa cena. A vida. Ou, em rápido resumo, da democracia e da liberdade.

Eu descobri que, para enfrentar a AIDS, tinha de fazer uma opção radical pela vida. Isto me impôs procurar uma relação absolutamente democrática com meus médicos. Tenho tido grande felicidade por dizer que meus médicos estão me ajudando a vencer a morte civil. Assim, um dia, vão ajudar-me a viver minha morte com dignidade.

No livro Os Direitos do Paciente de Christian Gauderer, a medicina ocupa o seu lugar na cena da vida. Com grandeza. Colocando a morte em cena com a infinitude dos que se sabem imortais.

Deste livro, que é para ser lido por todos, sai uma imagem de que a medicina não trata nem de órgão, de biologias, de doenças, de casos ou de leitos. Nem mesmo de "doentes". A medicina trata de pessoas. E não apenas abstratas "pessoas humanas" - trata de sujeitos de direitos, de cidadãos.

Através de livros como este estamos entendendo melhor a saúde, ou seja, estamos entendendo melhor a liberdade. Alguns médicos, dentro dos seus consultórios, estão nos convidando para a festa da vida. Cabe-nos não apenas aceitar, como também tocar nossos instrumentos. Impacientes. Cabe-nos afinar a orquestra de nosso instrumental. Médico, mas não medicalizado. Sábios, mas como quem sabe da vida.


*Sociólogo

Ex-Presidente do Grupo pela Vidda

Ex-Vice-Presidente da ABIA


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